Maria não fica preocupada com a casa. Não é
solidária com a irmã no serviço. Quer somente estar com Jesus. Sentada aos seus
pés, escuta-o atentamente. Ela escolhe algo inédito para as mulheres de sua
época. Torna-se discípula! (8,38; 10,39; At 22,3). Com qual desses três
personagens nos identificamos mais?
SITUANDO
Esta narrativa sobre a visita de Jesus à Marta e
Maria é própria de Lucas. O evangelista situa este texto em seguida à parábola
do samaritano (Lc 10,29-37). Lucas deve ter um bom motivo para isso. Um dos
motivos de ligação entre esta narrativa e a parábola do samaritano é que Jesus
se faz próximo.
Entra na casa de Marta, conversa, come junto com as
duas Irmãs. Ele se aproxima de duas mulheres, que, como as outras judias da sua
época, eram consideradas impuras. Mas, também podemos supor que Lucas tenha
feito outra relação entre a parábola do samaritano e a narrativa de Marta e
Maria.
O texto informa que "Jesus entrou num povoado
e certa mulher, chamada Marta o recebeu em sua casa" (10,38). Diante das
críticas e da crescente oposição a Jesus, narrada no capítulo seguinte
(11,14-54), a acolhida prestativa de Marta e a escuta amorosa de Maria podem
ser também uma resposta bem concreta à pergunta do legista: "Mestre, que
farei para herdar a vida eterna?" (10,25).
Situar o texto de Marta e Maria no contexto das
comunidades helenistas também ajuda na sua interpretação. Nessas comunidades
havia um conflito entre cristãos vindos do judaísmo e os gentios, considerados
de origem pagã. Estes últimos eram tidos como impuros, porque não receberam a
circuncisão e não praticavam os costumes judeus sobre a pureza.
Por isso, nas comunidades cristãs, comer junto com
eles foi motivo de muito conflito (At 11,2). A Boa Nova deste texto é que Jesus
entra na casa de Marta e Maria e come com elas. Elas eram judias, mas eram
consideradas impuras por serem mulheres. Transparece no texto muita amizade e
confiança entre eles, pois Marta chega a fazer reclamações triviais em relação
à falta de solidariedade de sua irmã Maria (10,40).
COMENTANDO
1
- O que é mais importante: a oração ou a missão?
A tradição cristã encontrou neste texto uma amostra
de dois modelos de seguimento de Jesus, considerando um superior ao outro por
causa da palavra de Jesus: "Maria escolheu a melhor parte" (10,42b).
Assim, acham que Marta representa um seguimento de Jesus focado no
trabalho, na intensa atividade missionária ou apostólica. Maria representa um
seguimento focado na escuta, na oração, na contemplação. Mas, este dualismo é
falso.
Ninguém pode ser somente missionário, nem somente
contemplativo. Cada pessoa que deseja seguir Jesus precisa ser ao mesmo tempo
missionária contemplativa, ou contemplativa missionária. Por isso, volto ao
texto, para comentá-lo:
Lc 10,38 -
Marta recebe Jesus em sua casa
Jesus está a caminho e entra num povoado. Não
sabemos se ele está sozinho ou acompanhado dos discípulos. Esta pergunta fica
no ar. O que importa para o evangelista, ou para as comunidades de Lucas é a
acolhida de Marta: ela "o recebeu em sua casa". Na pessoa de Jesus de
Nazaré, Marta recebe a visita de Deus (Lc 1,68.78; 7,16; 19,44)
10,39
- Maria é discípula de Jesus
Maria é livre em relação ao papel tradicional da
mulher. Ela não está preocupada com o que pensam ou dizem. Assume, como mulher,
uma nova postura diante da religião e dos padrões culturais da sua época. Ela
"ficou sentada aos pés de Jesus, escutando sua palavra" (10,39). Esta
era uma expressão ou postura para indicar uma atitude de discípulo/a (At 22,3).
10,40
- Qual é mesmo o papel das mulheres nas comunidades cristãs?
Ocupada e cansada, agitada com muitos
serviços, Marta tenta envolver Jesus em um problema doméstico de falta de
participação de Maria no serviço da casa. Será que o questionamento de Marta
tem a ver com tarefas caseiras ou por trás de sua frase tem um significado
escondido?
Marta pode estar expressando a
opinião de alguns círculos cristãos, que pretendiam limitar a função das
mulheres aos serviços privados e internos nas comunidades cristãs. Não por
acaso, se recorrermos ao original grego, encontraremos Marta "ocupada com
muita diaconia".
10,41-42
- Maria escolheu a melhor parte
Jesus escuta Marta, entende seu cansaço, e tenta
ajudá-la a encontrar um sentido maior, mais amplo para sua vida, para o
discipulado das mulheres. "Marta, Marta, tu te preocupas e agitas por
muitas coisas, mas uma só é necessária. Maria, pois, escolheu a melhor parte e
esta não lhe será retirada".
Jesus passa do assunto da comida para o sentido da
vida. Maria escolheu a apaixonante aventura de viver na intimidade dele, para
entregar-se totalmente ao seu projeto. Sua escolha é confirmada por Jesus:
"e esta não lhe será retirada" (10,42).
ALARGANDO
Jesus
e as mulheres do seu tempo
De um modo geral, as mulheres que se aproximaram de
Jesus pertenciam ao escalão mais baixo da sociedade do seu tempo. Muitas delas
eram doentes e foram curadas por ele.
Provavelmente eram mulheres que não tinham vínculo
com nenhum homem: eram viúvas indefesas; esposas repudiadas; mulheres sozinhas,
sem recursos e difamadas. Havia também prostitutas, que eram consideradas fonte
de impureza e de contaminação. E Jesus acolhia a todas com o mesmo respeito e
dignidade.
Elas sentavam-se entre os pecadores e indesejados
para comer junto com Jesus. Embora a comunidade dos essênios não aceitasse
mulheres em sua "mesa santa" e nem os fariseus as aceitassem na sua
"mesa pura", porque observavam a lei da pureza ritual criada pelos
sacerdotes.
Esta comida de Jesus junto com as
mulheres, os pecadores e os indesejados era precisamente um símbolo e uma
antecipação do Reino de Deus. Esta comunhão de mesa com pessoas consideradas
impuras mostrava como os "últimos" do povo santo e as últimas da
sociedade patriarcal são os "primeiros" e as "primeiras" a
entrar no Reino de Deus.
Mas, essa presença das mulheres à
mesa com Jesus era um escândalo para as boas famílias. Jesus não se intimida.
Ele as acolhe com o amor compreensivo do seu Abbá. Jesus
aproxima-se delas sem medo e as trata abertamente, sem deixar-se condicionar
por nenhum preconceito.
Certamente, as mulheres que
seguiram o movimento de Jesus pelos caminhos da Galileia viam nele uma
alternativa para uma vida mais digna.
O jeito especial de Jesus olhar
para todas as mulheres, a partir da sua intimidade com seu Abbá e
da sua visão do Reino de Deus, lhe dá criatividade e autoridade para mudar as
situações de opressão e dominação aparentemente sem saídas. E Jesus o faz de
maneira nova, diferente, inesperada. O
texto de Marta e Maria desperta a memória da tradição de Jesus.
Ao escrever este texto, Lucas
está apontando para esta Boa Nova que já estava sendo um pouco esquecida no
tempo em que ele escreveu seu evangelho: por volta do ano 85 d.C.
Fonte: Centro de Estudos Bíblicos, São
Leopoldo, RS, Brasil.
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