sábado, 28 de março de 2015

AS COXAS - o nome descoberto

______________________________________________________

 
Comentário sobre relato bíblico:

 

 "... ficando ele só; e lutava com ele um homem, até ao romper do dia. Vendo este que não podia com ele, tocou-lhe na articulação da coxa; deslocou-se a junta da coxa de Jacó, na luta com o homem.

Disse este: Deixa-me ir, pois já rompeu o dia. Respondeu Jacó: Não te deixarei ir se me não abençoares."  Gênesis 32:24, 25

______________________________________

 

 

As coxas: o nome descoberto

 

Evaristo Eduardo de Miranda

 

No texto bíblico, as coxas representam um dos lugares mais significativos das transformações interiores do homem que, nas trevas, está em luta consigo mesmo. O humano pode sair de seu infantilismo espiritual rastejante e de sua inconsciência. E o faz mediante tropeços que o levam a mancar. Caminhar mancando é um sinal de estar ciente de sua natureza incompleta, das dimensões interiores ainda não esposadas.

As coxas representam a possibilidade de tomada de consciência da fraqueza de nossa força e da força de nossa fraqueza. A expressão em português "se mancar" o homem capacita-se, convence-se  de que está sendo inoportuno, inconveniente ou com etendo erro ou engano. A falha ou esquecimento com relação a algum compromisso também é tratada como "dar uma mancada".

A coxa é a parte do membro  inferior do homem que vai desde as virilhas  até o joelho, e cujo esqueleto é o femur. A coxa é naturalmenrte associada com o quadril (cadril - cadeiril, cadeira), onde se situa a articulação de fêmur com ilíaco. é um lugar onde se unem força e erotismo. "Os contornos de tuas ancas são como, no  anéis, obra de mão de artista" diz o amado a sua amada, no Cântico dos Cânticos (Ct 7,2). Se na tradição cabalística os pés correspondem ao feto no ventre da mãe, os joelhos à criança em seu nascimento, com todo o seu poder vital e sua força emergente, as coxas evocam a adolescência e as passagens iniciáticas do amadurecimento.

No texto bíblico, as coxas e os quadris - onde se ata o cinto1, carrega-se a espada 2  atam-se as vestes que cobrem a nudez 3 - falam do Homem  de espírito em conflito com o Homem animal. Jacó é abençoado no dia em que é atingido e ferido por Deus no músculo 4 da coxa, bem próximo da genitália, e fica manco ( Gn 32, 25-26).

Como Jacó, nós também somos abençoados no dia em que tomamos consciência de nossa condição de coxos, de imperfeitos, de não-realizados. Como diz o profeta: "Desde que me vejo como sou, bato no quadril" (Jr 31, 19). Num dos epizódios mais significativos da Antiga Aliança, Jacó tem, no final dessa noite de luta com seu outro, o nome mudado. Ele descobre pela luta seu verdadeiro nome, Yisrael.

 

Qual o contexto dessa luta?

 

JACÓ_ANJO_COXA

 

Na plenitude  da dinâmica de TER, Jacó havia obtido de seu irmão Esaú o direito de primogenitura em troca de um prato de lentilhas ruivas e, por meio de uma série de ardis, a bênção sacramental de seu pai Isaac.  Esaú  promete matar Jacó após a morte próxima de seu pai (Gn 27,41). Rebeca, sua mãe, aconselha Jacó a fugir para a casa de seu tio Laban. Ele deixa seu irmão e seus pais e parte somente com seu bastão.

Durante a viagem, entre Beer-Sheba, onde vivia, e as terras de Harran, Jacó terá a visão da escada cujo topo atingia o céu. Nas terras do tio, Jacó casará com suas duas filhas, Léa e Raquel, e o servirá por sete anos. Entrará em conflito com Laban e seus filhos, viverá um complexo acerto de contas e finalmente retornará ao encontro d de Esaú.

Temeroso, ele (Jacó) se prepara para o reencontro com Esaú. A força de Esaú vai contrapor-se à força de Jacó. Esaú não fora capaz de deixar pai e mãe, de abandonar estas muletas, e vivia no labirinto parental. Um pouco como o irmão mais velho do filho pródigo na parábola de Jesus (Lc 15, 11-32).

Ao caminhar para si, Jacó constroi uma força ascensional para opor-se a Esaú. Expede mensageiros, toma preocupações, envia presentes ao acampamento do irmão e pede a proteção do Senhor: "Eu peço, salva-me da mão de meu irmão, da mão de Esaú, pois tenho medo dele" (Gn 32,12). Chegada a noite, Jacó passa o rio Yaboqco suas duas mulheres, seus dois  servos,  seus onze filhos e tudo o que lhe pertencia. Faz essa passagem duas vezes. Retorna e fica só. Um homem luta com ele até a aurora.

Em Jacó, o Homem em túnica de pele deixa a suas muletas parentais e torna-se Homem consciente, desidentifica-se do irmão e adquire uma outra força. Essa nova força começa a ser adquirida no campo energético do feminino. O modo de conhecimento do feminino é diferente do masculino e representa uma inspiração à qual o espírito masculino raramente tem acesso.

Ele descobre o feminino em primeiro lugar da forma mais elementar, ao desposar sucessivamente as duas filhas de Laban. Depois, a partir dessa experiência é que será capaz de assumir e esposar (sponsa 5 ), as dimensões femininas em seu ser, ao tornar-se responsável. Jacó adquire bens materiais e espirituais por seu trabalho exterior e interior. Por sete anos, um ciclo cósmico, um tempo de aperfeiçoamento, ele vive nessa dimensão "lunar", feminina. Laban em hebraico significa branco, mas também um dos nomes do astro da noite, a Lua.   

Deus diz a Jacó: "Retorna à terra de teus pais, a teu nascimento, Estou contigo" (Gn 31,3). Nesse retorno às origens, Jacó, Homem consciente e responsável, prepara-se para encontrar-se com o outro-ele  mesmo, seu irmão em túnica de pele.  Jacó prepare-se para esposar uma dimensão ainda mais difícil de si mesmo.  Jacó teme. Tenta ardís, como em outras ocasiões de sua vida. Seu irmão, indiferente, marcha em sua direção com quatrocentos homens. Isso exige de Jacó morrer para seus medos. Exige uma nova estatura, capaz de restituí-lo com relação a essa redutável dimensão do irmão gêmeo. Ele prepara-se para essa passagem.

Diante do rio Yaboq, de instigante toponímia, Jacó fará durante a noite, duas vezes a passagem desse vau com seus bens e familiares. No texto, a palavra hebraica Ever, o nome dos hebreus, Homens de passagem, é repetida duas vezes. ou seja, Jacó realiza a plenitude de seu nome, tanto como hebreu, como no jogo homônimo de palavras com o rio Yaboq, que também mimitiza o verbo hebraico lutar, yeavoq,   cuja raiz significa abraçar, apertar e pulverizar.

"Às trevas da criatura responde a noite da Transcedência" 6, nas palavras do místico S. João da Cruz (1542-1591). Anoiteceu. É a noite escura, a noite da alma. "Um homem luta com ele até elevar-se a aurora" (Gn 32,25). A tradição oral viu nesse homem um anjo, um mensageiro de Deus.  

Para Rashi, citado, "nossos sábios, de abençoada memória", era o anjo de Esaú. Pelo verbo hebraico, esse homem o abraça, até reduzi-lo a pó. Menahen ben Saruk, citado por Rashi, traduz essa passagem como "e empoeirou-se um homem".  Em sua noite escura, Jacó - que para os cristãos prefigura Jesus - dirá: "A noite penetra meus ossos e me estraçalha, meus nervos sofrem sem interrupção" (Jó 30,17). Rashi entende essa passagem de Jacó como "amarrado a ele, a seus laços. Porque esse é o meio de duas (pessoas) que se esforçam para derrubar uma à outra: uma abraça e enlaça (a outra) com seus braços" 7.

O texto hebraico diz Ish, um homem, no sentido de "esposo". Jacó entra no casamento místico consigo mesmo, no mais profundo e alto nível enegético, a fim de poder encontrar e "desposar" seu irmão. Esaú, homem vermelho, animal, grossseiro, não realizado, mas pelo qual passa a encarnação de Jacó.  Trata-se da dança do homem consigo mesmo e, enquanto vida, de sua dança com Deus 8. Uma dança noturna e dolorosa que deixa marcas. Nada podendo, o homem toca na palma da coxa de Jacó e ela se desloca. Quando o sol brilha, Jacó "coxeava da coxa" (Gn 32,32). No texto bíblico, vê-se o gesto de bater na coxa como gesto de dor (Ez 21, 17).

Ele fica coxo. Ele sempre fora coxo, como visto na simbologia dos pés, mas agora ele toma consciência de que ainda não esposou a totalidade de seu ser e caminha para sua verticalização.  Atingidos na coxa, estamos diante de um sintoma revelador: para atingir sua verticalização,  o Homem deve desposar todo o potencial de energia selada em seu feminino. Jacó, pressentindo a identidade do homem Ish, pede sua benção. 

Quando indaga o nome, o homem responde:  - Porque me perguntas?  Em realidade a resposta já tinha sido dada. Jacó havia combatido com Yisrael para se tornar Yisrael. "Teu nome não será mais dito Jacó mas Yisrael - lutador de El: sim, lutaste (saro) com Deus (EL) e com os homens (Ish), e prevaleceste" (Gn 32,29). Revelação do nome e de toda energia.

É no nível do lutar que a transformação foi feita de Jacó para Yisrael, reduzido a pó até atingir seu princípio (príncipe= sar, em hebraico).O homem atinge sua divinificação quando encontra a fonte ou o princípio pela qual ele integra-se a totalidade do cosmos. Todos nossos Nomes, germes da Vida, nos quais Deus soprou em Adâm - ou melhor  ainda soprou Adâm (Gn 2,7) - estão contidos no seu santo Nome, IHWH. 

Revestido da força divina, Jacó-Yisrael reencontra seu irmão Esaú. Fora de uma relação de forças. A experiência de Jacó junto a Laban  é homóloga à dos homens  junto ao Egito. O povo de Yisrael, nascido de Jacó, viverá a experiência de passagem, da luta consigo mesmo e da integração mística de suas dimensões masculinas e femininas.   Da criança Jacó nasceu um homem Yisrael. Com   Jacó devemos tomar consciência que, longe de sermos seres alados, somos todos coxos.

No interior da coxa de Júpiter (Zeus), Dionísio havia realizado uma segunda gestação, como numa árvore oca. Nas pessoas idosas, a ruptura espontânea da cabeça do fêmur 9 deveria ser uma última lembrança de nossa natureza coxa e da eminência do final desta segunda gestação.

Acidentes dessa natureza evocam a proximidade da passagem, da páscoa individual, a cruzar da Porta dos homens de TER para SER, para ver realizada a profecia do livro do Apocalipse: "Sobre seu manto e sua coxa ele traz inscrito um nome: Rei dos reis e Senhor dos Senhores" (Ap 19,16).  

 

1. " A justiça será o cinto de seus quadris e a fidelidade, o cinturão de seus rins." (Is 11,8)

2. "...cada um sua espada sobre os quadris para enfrentar o terror da noite" (Ct 3,8)

3. "Confecciona-lhes calções de linho para cobrir a nudez; irão dos rins às coxas" (Ex 28,42)

4. O corpo humano tem cerca de 640 músculos diferentes, todos voltados para empurrar e contrair. Os músculos da coxa cumprem também um papel na sustentação do esqueleto humano.

5. Esposa. Presente na palavra re-sponsa-bilidade.

6. São João da Cruz, Obras completas. Vozes, Petrópolis 1991.

7. Chumash. Bereshit. Bíblia. Com comentários de Rashi. Trejger Editores, São Paulo 1993.

8. Annick de Souzenelle. Le symbolisme du corps human, op.cit.

9. O fêmur é o osso único da coxa, o maior do corpo humano e mais resistente do que o concreto. É provável que a maioria dos humanos, ou pelo menos boa parte da humanidade, viva em casas menos resistentes do que seus fêmures! A estrutura interna e externa do fêmur, na forma de articulação na bacia, com a cabeça deslocad com relação ao eixo principal, serviram de modelos para a construção da torre Eifel em Paris.

 

Fonte: Corpo - Território sagrado de Evaristo Eduardo de Miranda, Edições Loyola, 6ª edição, 2010.

Autor: Evaristo Eduardo de Miranda é mestre e doutor em ecologia pela Universidade de Montpellier, França, profundo conhecedor da teologia espiritual, agente da pastoral da esperança. De sua aproximação às escrituras e ao hebraico nasceu este livro.

Nota: Este blog tem publicado, além de artigos de Ciência Cristã, escritos de pessoas situadas em diferentes religiões, que ao desafiarem sua inteligência, sem medo de ousar, procuram buscar a verdadeira essência dos ensinamentos dos textos da Bíblia. Apontando com suas produções, de algum modo, para aspectos ou características da teologia da Ciência Cristã.

Desta maneira, mantendo diálogo inter-religioso, participamos da elevação do pensamento do leitor a consciência de princípios universais, básicos para o cristianismo, importantes para o progresso da humanidade.

"A familiaridade com os textos originais e a disposição de abandonar as crenças humanas (estabelecidas por hierarquias e instigadas às vezes pelas piores paixões dos homens), abrem o caminho para que a Ciência Cristã seja compreendida, e fazem da Bíblia o mapa náutico da vida, no qual estão assinaladas as boias e as correntezas curativas da Verdade." Mary Baker Eddy

 

ATENÇÃO:   As coxas: o nome descoberto   não representa necessariamente o pensamento do Movimento da Ciência Cristã (A Igreja Mãe em Boston ou qualquer de suas filiais, sociedades ou grupos informais de estudos, existentes em diferentes países do mundo), foi publicado para refletirmos sobre a importância do estudo da Bíblia no contexto histórico, nas dimensões política, social, cultural e econômica em que seus relatos foram escritos. Conforme recentes descobertas sobre fatos nela registrados e a opinião de estudiosos do texto bíblico, como objetivo de alcançarmos o significado espiritual das Escrituras.

______________________________________________________

domingo, 8 de março de 2015

MULHERES E PROFETISMO NO PRIMEIRO TESTAMENTO

________________________________________________________

 

 

 

DIA INTERNACIONAL DA MULHER

 

8 de março de 2015

 

 

" A falta de poder espiritual na demonstração limitada

 

do Cristianismo popular não reduz a silêncio o labor dos séculos.

É a consciência espiritual, não a corporal, que se faz necessária".

Mary Baker Eddy

 

________________________________________________

 

 

Comentário sobre relatos bíblicos:  

 

Mulheres e profetismo no primeiro testamento 

   

1. Iniciando nossa conversa

“...O profetismo é também o anúncio da esperança, da utopia que buscamos e que não nos deixa desanimar, porque temos a promessa o futuro, assim como já conduziu os passos dos profetas e pais que nos precederam na fé.” (CAVALCANTE, 1987)

Ao falar em profecia, profetas e profetismo imediatamente pensamos nos grandes nomes de Amós, Isaías, Jeremias, Ezequiel, Elias; todos homens grandiosos que fazem parte do cenário profético das Escrituras Sagradas. Porém se olharmos atentamente os textos bíblicos numa perspectiva feminina veremos que, no percurso do agir profético, houve, como ainda há em nossos dias, a participação insubstituível da mulher.

No entanto, se a leitura bíblica que fazemos ainda é carregada de pré-conceitos e estereótipos masculinos, as mulheres profetisas não serão encontradas facilmente, mesmo por que a tradição judaico-cristã nunca fez questão de reconhecer esta participação na história da salvação. Mesmo hoje, parece que a lista de mulheres mártires e profetisas lembradas em nossas liturgias não enche uma página. Será que as mulheres não participam ou será que continuam propositalmente esquecidas?

02

  Rute estava disposta a trabalhar arduamente num serviço humilde para sutentar a si mesma e a Naomi, sua sogra. 

 

Hoje há milhares de mulheres, judias, protestantes e católicas que procuram fazer uma leitura bíblica no contexto do povo, enfatizando o papel das mulheres e de outros marginalizados na Bíblia. No entanto, a força da visão patriarcal da religião é tão universal, que milhares de mulheres ainda acreditam que Deus (um puro espírito sem gênero) é masculino e por isso sempre escolheu homens e continuará a escolhe-los como profetas, sacerdotes e governantes do povo por serem “melhores e moralmente mais fortes do que as mulheres”.

Mas isso não precisa continuar sendo assim, uma visão histórica e socialmente construída leva quase o mesmo tempo para ser desconstruída, é o que as mulheres, profetisas de nosso tempo estão tentando forjar. É o que nos mostra a afirmação de uma delas, num ensaio sobre mulheres na Bíblia:

“As biblistas feministas, em geral, são multidisciplinares em sua abordagem do texto bíblico. Elas trabalham com a análise literária, a antropologia, a sociologia, a lingüística, a filosofia e a psicologia. A interligação de todos esses campos permite penetrar o texto em seu contexto de povo de Deus num mundo abrangente. Essa leitura é importante para todas as religiões.” (Ana Flora Anderson, s/d)

Ao falarmos de profetismo feminino, logo de cara nos deparamos com o que alguns autores/as denominam ocultamento e nós concordamos com eles. Em nossas leituras e análises, observamos que as mulheres aparecem muito nos textos, mas em geral, mesmo quando sua presença é importante, seu nome é substituído ou acompanhado por sua função familiar: a irmã de Moisés, a mãe dos macabeus, a mulher do profeta; e hoje ainda- a mãe do padre Josimo, as mães da praça de maio, as margaridas, a viúva do Chico Mendes, etc. é por essas e outras que necessitamos de um olhar atento, vigilante, quando quisermos descobrir onde há mulheres atuando, fazendo, criando, lutando e proferindo uma palavra profética na história.

”Se houve todo um processo de ocultamento das mulheres por parte dos que escreveram a Bíblia, isso nos leva a uma leitura mais crítica. Lá onde alguma mulher aparece explicitamente numa posição louvável, especialmente se ela recebe o título de “profetisa” ou “juíza”, é porque sua liderança ultrapassa todas as barreiras patriarcais e se impôs como impossível de ser omitida” (Cavalcanti,1987).

2. Profetisas do Primeiro Testamento

2.1.Miriam ( Ex 15,20-21;Mq 6,4; Nm 12)

A Bíblia cita inegavelmente a profetisa Miriam como uma das envolvidas no projeto de libertação dos hebreus junto com Aarão e Moisés. O cântico de Miriam é um dos mais antigos escritos da Bíblia, o que denota que desde o começo houve a presença de mulheres na história de Israel acontecida e também na história escrita.

Miriam é aquela que puxa o cordão das mulheres, toca tamborim, dança e canta em homenagem a Javé, o libertador. Obviamente o texto menciona seu parentesco com Aarão, mostrando uma forma de não deixar a liderança de uma mulher sobressair sozinha. No entanto em Miquéias 6,4, Miriam aparece em pé de igualdade com Moisés, mas no capitulo 12 dos Números, ela é punida com a lepra por contestar Moises e só é curada com a mediação do mesmo.

Apesar das tentativas de diminuir sua importância, uma leitura do ponto de vista da mulher coloca Miriam em destaque e seu profetismo consiste na liderança das mulheres, no louvor e reconhecimento ao Deus que liberta e quer vida digna para todos e todas.

2.2. Débora (Jz 4-5)

Num momento de fraqueza e dispersão das tribos, a juíza Débora convoca o chefe Barac e todos os guerreiros para lutar em defesa do povo e sob a proteção de Javé. O texto fantástico de Juízes 4 deixa claro o brilho de Débora, assim como o de Jael em oposição à fraqueza masculina revelada em Barac e Sísara. É esse texto que ressalta o profetismo de Débora e seu papel: despertar as lideranças adormecidas, convocar as tribos para a união, levantar o ânimo de todos e sobretudo convocar à fé no Deus libertador. Essa é fé cantada em ritmo de festa e louvor, terminando com um grito confiante:

“Aqueles que te amam, Javé, que eles sejam como o sol quando se levanta em sua força”(jz 5,31)

Mais tarde, a carta aos Hebreus (11,33) fará menção ao tempo dos juizes, citando vários e até o covarde Barac,mas omite Débora. É preciso que as mulheres e também os homens de hoje desconstruam essas idéias de exclusão ou diminuição do papel da mulher contidas na Bíblia, analisando o contexto do escrito e pondo as cartas na mesa.

 2.3 Hulda (2 Rs 22,14-20)

No tempo da reforma de Josias, a infidelidade a Javé e a idolatria se tornam um perigo iminente, Josias pede seus homens de confiança para consultarem a Javé, no entanto eles se dirigem a Hulda, que prediz a desgraça de Jerusalém. Sua função é comparada a de muitos profetas que são consultados pelos reis em momentos difíceis e decisivos. Seu profetismo consiste em alertar a consciência de fé do povo, e tal consciência emerge, com o mesmo grau de agudeza, entre homens e mulheres.

  2.4. Agar (Gn 16; 21,8-21)

Desculpe-nos os biblistas tradicionais se não nos reportamos a matriarca Sara e sim a Agar. Acreditamos que devemos isso a ela e a todas as mulheres negras, escravizadas e espoliadas de nossa história. Os dois textos apresentam a história de Agar e seu filho Ismael, que mesmo diferentes entre si, revelam a resistência de Agar a submeter-se a uma situação de injustiça, na qual ela reivindica os direitos de seu filho, o primogênito de Abraão.

A história de Agar entra em sintonia com a história de milhares de mulheres, mães solteiras ou abandonadas pelos maridos, tendo que arcar sozinhas com a criação dos filhos. E o incrível é que vendo a história por essa ótica, Abraão, nosso pai na fé, fica em maus lençóis, foi omisso, deixou que seu filho fosse embora, viver em condições difíceis no deserto com sua mãe, tendo na casa do pai todo o conforto.

Porém Javé, que é o Deus da vida, recompensa Agar a ela se manifestando e anunciando a promessa de grande descendência. E ainda que Sara nos pareça vitoriosa, Javé não abandona Agar que foi oprimida, mas cumpre sua promessa, acompanha e protege dos desvarios de sua “senhora”.

2.5. Ana ( 1Sm 1, 1-2, 11)

Ana é encarada como a profetisa que inspirou o Magnificat. Sendo estéril, é agraciada por Javé com um filho, que consagra a Deus por toda a vida. Ela, humilhada por Fenena, outra esposa de Elcana, seu marido, representa a grande massa oprimida que não tem voz e nem vez e até o pão lhe é dado com indiferença e desprezo. Mas ela não se deixa subjugar e confia no Deus que dá vida, liberta e faz justiça. Seu cântico deixa a perspectiva individual de uma mãe que se rejubila com a gestação, e passa ao louvor do Deus cheio de sabedoria e justiça.

2.6. Rute e Noemi (livro de Rute)

O livro de Rute não enfoca especificamente o carinho filial de uma nora por sua sogra, mas aborda a questão da terra, da fome e da família de Israel. Duas mulheres em condições peculiares: uma viúva (Noemi) e a outra também viúva e estrangeira (Rute, a moabita). Ambas vão lutar pela sobrevivência numa situação precária na qual fazem valer a lei a seu favor.

O profetismo de Rute e Noemi consiste na afirmação da vida e da posteridade da família e do povo, num contexto de total desesperança.“Rute, cujo nome significa amiga ou saciada, é o símbolo da mulher por quem o povo renasce, porque sua fé foi agraciada e sua esperança tornou-se fecunda”.

2.7. Ester (livro de Ester)

A personagem de Ester surge ligada a um contexto de perigo iminente do extermínio do seu povo. O livro relata o episodio da historia dos judeus em que um alto funcionário da corte do Rei Assuero decreta o extermino dos judeus. Ester, esposa do rei, de origem judia, expõe sua vida na tentativa de impedir que o decreto fosse cumprido e consegue inverter o processo. Ela representa uma mulher aparentemente frágil, que assume a defesa do povo ameaçado, e para faze-lo convoca todos os seus ao jejum e a união de forças.

2.8. Judite (livro de Judite)

Trata-se de uma história fictícia que objetiva restabelecer a fé no Deus que “está conosco” e recuperar a confiança do povo, mantendo-o fiel ao projeto de Javé. Como Jael e Ester, Judite arrisca sua vida e usa seus encantos femininos para cativar e depois trair o general inimigo e assim salvar os filhos e filhas de Israel.

O bonito dessa narrativa é que não há negação da corporeidade feminina, claramente explicita no grau de erotismo e sensualidade presentes no texto. Mas o conteúdo mais profundo da atuação feminina,está no modo como Judite se dirige aos chefes da cidade para dizer-lhes que não se pode tentar a Deus, dando-lhes prazos de intervenção. De Javé só se pode esperar ação livre e gratuita.

Oração e ação caminham juntas no profetismo de Judite, que ora e jejua no tempo da provação e preparação, e canta e dança, enfeita-se e distribui ramos às companheiras para celebrar a vitória e a paz. Como Débora, Miriam e Rute, Judite também nos oferece um cântico de alegria contagiante que enriquece a escritura sagrada, esculpindo nela os contornos de nossa feminilidade.

No momento mais decisivo de sua atuação, sua oração faz lembrar aos homens e mulheres de nossa sofrida América latina que nosso Deus é nossa força, “é o Senhor quem protege o oprimido”:

“Teu poder não está no grande número, nem tua soberania entre os que tem força. És o Deus dos humildes, o socorro dos oprimidos, o amparo dos fracos, o protetor dos abandonados, o salvador dos desesperados” (Jt 9,11)

  2.9. A mãe dos Macabeus

Embora se trate de uma obra edificante, os fatos relatados devem ter algum fundamento histórico e o episódio relativo à mãe dos macabeus não deve ter surgido do nada. O livro refere-se às lutas dos Judeus, liderados por Matatias e seus filhos, especialmente Judas Macabeu, contra os reis selêucidas, que quiseram impor os costumes gregos na Judéia. No contexto apocalíptico colorido de terror, como se vê pela descrição do martírio dos sete filhos, a figura que mais se sobressai é a da mulher. Seui profetismo marca esse momento de modo especial. Gallazzi afirma que aquela mãe se torna o símbolo “do povo pobre que resiste, recupera sua memória e elabora uma contra-ideologia, que sustenta a resistência e a luta do povo. A mulher ‘produz’ uma nova mística de vida, num momento que reina a morte”.

A profissão de fé daquela mãe corajosa assume uma conotação bem feminina, dirigindo-se a seus filhos na língua de seus pais, exortando-os e animando com ardor viril o seu raciocínio de mulher (2 Mc 7,21). Trata-se de uma confissão de fé explicita no ato criador de Deus que gera os homens através do seio da mulher e cujo poder é capaz de tirar da morte aqueles que foram assim gerados.

Como essa mulher que não tem nome, milhares de mulheres insurgem contra a ideologia vigente sendo protagonistas anônimas contra a violência do opressor que atinge mulheres e crianças indefesas nos conflitos de terra, na guerra urbana do dia-a-dia, nas favelas, becos e guetos de nossa espoliada América Latina.

 

3. Mulheres e Profetismo hoje: Para não concluir nossa conversa

Ler a Bíblia na ótica da mulher significa procurar o que cada texto diz às mulheres de hoje, de modo a impugnar qualquer interpretação distorcida pelo machismo. A interpretação da Bíblia sempre foi masculina, pois o masculino era tido como universal. Mas se a idéia de universal passa pela ótica de que todos somos iguais, embora diferentes, homens e mulheres devem se sentir incomodados cada vez que a leitura da Bíblia conduzir à desigualdades e discriminações de qualquer natureza.

As profetisas de hoje estão saindo do anonimato e rompendo a cadeia da exclusão. Não podem ficar de fora dessa reflexão, as milhares de mulheres que fazem história em nosso continente e no mundo afora, cada uma a seu modo, com sua cultura e expressão, vão rompendo “as algemas”e mostrando a cara e a voz. Não estamos falando da “revolta dos sutiãs”, mas de mulheres que não aceitam a ditadura da beleza imposta pela mídia e arrebentam as correntes da violência doméstica, do direito de escolha, libertas e provocadoras de mudanças. Estamos falando dasmulheres que assumem a defesa de seu povo com coragem e firmeza( Jz 5, 28-30) e não ficam passivas a esperar os homens voltarem da guerra com os despojos”.

Parece-nos costumeiro ouvir dizer que os profetas estão mudos, ninguém anuncia ou denuncia mais, talvez seja por que a voz dos homens que gritou durante séculos, inclusive abafando a voz das mulheres, esteja enfraquecida pelo egoísmo e falta de partilha na missão profética. Pare e pense: será que os profetas sumiram ou será que é a vez e a voz das profetisas que estão sobressaindo? As mães da praça de maio, as quebradeiras de coco babaçu, as rendeiras e doceiras reunidas em cooperativas, Tereza de Calcutá, Irmã Dulce, Maria da Penha, Doroty, as margaridas, as mulheres do MST e de outros movimentos populares, Oneide, Rosa, Ana Maria, Agostinha do Cebi, Tereza Cavalcanti, Inês, Catarina de Sena, Joana d’Arc, Anita Garibaldi, Ana Nere, e as milhares espalhadas por este mundo, incluindo todas as alunas das escolas bíblicas espalhadas pelos cantos desse pais, continuam como Raab, Séfora e Fuah, dentro do contexto de sua feminilidade a gerar vida e vida em abundância para todos e todas.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BÍBLIA DE JERUSALÉM. São Paulo: Paulus, 2001.

BÍBLIA SAGRADA – Ed. Pastoral. São Paulo: Paulus, 2000.

COLEÇÀO: A PALAVRA NA VIDA. Mulher: Fermentando e Gerando Vida.Várias Autoras. nº 121.São Leopoldo,RS: Cebi, 2001.

CAVALCANTI.Tereza M. Mulheres e Profetismo no Antigo Testamento. In: Curso de Verão, Ano II. São Paulo: Paulinas, 1988.

STRÕHER. Marga J. (et al). À Flor da Pele: Ensaios sobre gênero e corporeidade. São Leopoldo,RS: Sinodal, Cebi, Est; 2004.

Fonte: Alexandre, Edicarlos,  Eliana, Elaine, Jucimar e Maria das Graças - da Escola Biblica Flor de Piqui  - Participantes da 1ª Etapa da Escola B. Flor de Pequi/2007 - CBI 

_____________________________________________________________

 

Nota: É uma pena que, em meio a tanta produção acadêmica e reflexões sobre a Bíblia, pessoas de diferentes denominações ainda se contentem com a interpretação cotidiana ou de senso comum sobre textos bíblicos. Deixando de usufruírem, progressivamente, da profunda sabedoria contida nas Escrituras.

Este blog tem publicado, além de artigos de Ciência Cristã, escritos de pessoas situadas em diferentes religiões, que ao desafiarem sua inteligência, sem medo de ousar, procuram buscar a verdadeira essência dos ensinamentos dos textos da Bíblia. Apontando com suas produções, de algum modo, para aspectos ou características da teologia da Ciência Cristã.

Desta maneira, mantendo diálogo inter-religioso, participamos da elevação do pensamento do leitor a consciência de princípios universais, básicos para o cristianismo, importantes para o progresso da humanidade.

"A familiaridade com os textos originais e a disposição de abandonar as crenças humanas (estabelecidas por hierarquias e instigadas às vezes pelas piores paixões dos homens), abrem o caminho para que a Ciência Cristã seja compreendida, e fazem da Bíblia o mapa náutico da vida, no qual estão assinaladas as boias e as correntezas curativas da Verdade." Mary Baker Eddy

 

ATENÇÃO:   Mulheres e profetismo no primeiro testamento  não representa necessariamente o pensamento do Movimento da Ciência Cristã (A Igreja Mãe em Boston ou qualquer de suas filiais, sociedades ou grupos informais de estudos, existentes em diferentes países do mundo), foi publicado para refletirmos sobre a importância do estudo da Bíblia no contexto histórico, nas dimensões política, social, cultural e econômica em que seus relatos foram escritos. Conforme recentes descobertas sobre fatos nela registrados e a opinião de estudiosos do texto bíblico, como objetivo de alcançarmos o significado espiritual das Escrituras.

___________________________________________________________