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As duas vozes mais antigas
da tradição de Jesus
John Dominic Crossan
DePaul University, Chicago, EUA.
Há duas duas vozes muito importantes e muito antigas ainda discerníveis [em meio aos textos do Novo Testamento]: a proclamação do Reino a partir de Jesus, que é continuada na proclamação do Cristo sobre Jesus. Em ambas as vozes carregam em si nuvens de controvérsias, mas, nesta apresentação, meu propósito não será debater tais controvérsias, e assim tomar uma posição em relação a cada uma delas de maneira a compreender como tais vozes divergentes se desenvolveram dentro da mesma matriz do movimento do Reino.
Primeira seção:
I. A tradição dos ditos originais
Os eruditos do século XIX que estudaram as conexões textuais evidentes entre os três primeiros Evangelhos – os assim chamados Evangelhos sinóticos de Mateus, Marcos e Lucas – concluíram muito consensualmente que Marcos foi a primeira fonte utilizada – e utilizada independentemente – por Mateus e Lucas. A minha própria pesquisa tem consistentemente confirmado essa conclusão.
A existência do EVANGELHO Q
Após a decisão geral sobre a prioridade marcana, os eruditos perceberam um corpo de material não marcano comum a Mateus e a Lucas com sequências, conteúdos e teologias comuns em número suficiente a ponto de indicar não unidades aleatórias da tradição, mas uma outra fonte escrita muito importante. Os especialistas alemães a denominaram Q, abreviação para die Quelle (alemão para “a fonte”).
O Evangelho Q é um escrito em grego, mas não guardado em nenhum museu ou biblioteca. Trata-se de uma hipótese necessária – necessária para explicar os dados não marcanos em Mateus e em Lucas. Mais uma vez, minha pesquisa confirmou a validade da segunda conclusão dos eruditos alemães e ela é meu primeiro pressuposto para esta seção.
Prefiro, por falar nisso, chamá-la de Evangelho Q em vez de fonte Q, com o objetivo de e enfatizar a sua integridade e não apenas o seu uso. Esse Evangelho Q não tem referencia clara à destruição real de Jerusalém ou de seu templo – como acontece, por exemplo, em Mc 13 – por isso é normalmente datado dos anos 50 do século I.
Nesta apresentação, assim, aceito e assumo a validade da teoria das duas fontes, nomeadamente, que Mateus e Lucas usaram, independentemente, duas fontes independentes – o Evangelho de Marcos e o Evangelho Q. Obviamente, a única forma de confirmar tais hipóteses é aceitá-las temporariamente e testá-las incansavelmente.
A independência do EVANGELHO DE TOMÉ
Há um outro texto importante a ser considerado além do Evangelho Q. Trata-se do Evangelho de Tomé, que não constitui uma hipótese alemã do fim do século XIX, mas um documento copta de meados do século XX. Desde a sua descoberta em 1945, numa das margens do rio Nilo, a controvérsia Nag Hammadi tem-se centrado em uma importante questão. Trata-se de uma coleção redigida dos ditos de Jesus extraídos dos três Evangelhos sinóticos – ou mesmo do Evangelho Q – ou é um texto independente em relação aos outros dois documento?
O local da descoberta, Nag Hammadi no mapa do Egito
Desde o princípio, há eruditos eminentes que se posicionam de ambos os lados do debate. No entanto, a minha própria pesquisa me convenceu a posicionar-me ao lado daqueles que defendem a questão da independência das fontes. O que me convence é, primeiramente, o argumento da ordem e, apenas secundariamente, o argumento do conteúdo.
O Evangelho de Tomé não possui uma narrativa ou uma estrutura temática. Simplesmente, é um apanhado de ditos de Jesus com palavras que unem alguns desses ditos aqui e ali. Se o autor fosse dependente de precedentes intracanônicos – seja copiando-os, seja recordando-os –, não haveria razão para separa tais derivações tão completamente e espalhá-las tão profundamente da maneira como aparecem na composição que chegou até nós.
Aqui está um exemplo do argumento da ordem e da sequência. Imagine alguém ler as séries de nove bem-aventuranças interligá-las em Mt 5,3-11 - que têm por sequência os pobres, os famintos, os perseguidos –, ou ler as quatro bem-aventuranças em Lc 6,20b-23 – que também têm por sequência os pobres, os famintos, os perseguidos – e, então, em vez de aceitar a óbvia ordem das palavras de “bem-aventurados” e mantê-las juntas, este alguém resolver espalhá-las pelo seu documento da seguinte maneira:
Bem-aventurados os pobres | Evangelho de Tomé 54 | Evangelho Q: Lc 6,20 = Mt 5,3 |
Bem-aventurados os famintos | Evangelho de Tomé 69,2 | Evangelho Q: Lc 6,21a = Mt 5,6 |
Bem-aventurados os perseguidos | Evangelho de Tomé 68 = 69,1 | Evangelho Q: Lc 6,22-23 = Mt 5,11-12 |
Não teria a preferência do Evangelho de Tomé, pela ordem de palavras, servido para manter a tríade unida – com o grego “bem-aventurado” sendo utilizado como uma palavra emprestada no copta?
Os coptas ou coptos em copta, ou.Remenkīmi en.Ekhristianos [literalmente: "cristão egípcio"] são egípcios cujos ancestrais abraçaram o cristianismo no século I. Formam um dos principais grupos etno-religiosos do país.
A língua copta que floresceu por volta do século III século no Egito Antigo, da família linguística camito-semítica ou afro-asiática. O alfabeto copta é uma versão modificada do alfabeto grego, com algumas letras demóticas utilizadas para representar alguns sons não existentes no alfabeto grego. Como língua cotidiana teve seu apogeu entre o século III e o século VI. Ainda hoje permanece como língua litúrgica da Igreja Ortodoxa Copta e da Igreja Católica Copta.
O copta é um estágio final da língua egípcia clássica, e foi falado até o século XVII. Origem: Wikipédia, a enciclopédia livre.
Bíblia escrita em copta
Nesse sentido, em termos de conclusão, acredito que a tal falta de semelhança em termos de ordem entre a sequência do Evangelho de Tomé e aquela dos evangelhos intracanônicos ou, por assim dizer, do Evangelho Q reconstruído, me forneçe a hipótese de trabalho de que o Evangelho de Tomé é completamente independente em relação a eles.
A propósito, “independência” significa, apenas e tão somente, o que foi agora proposto. Não se trata de um argumento velado para afirmar nada além deste caso. Enfatizo que a constatação da independência não quer dizer, por exemplo, que o Evangelho de Tomé contenha citaçõesnão redigidas de Jesus carentes de comentários ou contenha recordações sem nenhuma edição teológica posterior. A constatação da independência também não resolve o problema da data original do texto.
Se o Evangelho de Tomé fosse dependente em relação a um ou mais de um dos Evangelhos sinóticos, ele seria, necessariamente, posterior a eles. No entanto, como se trata de um texto independente, pode ser mais antigo, contemporâneo ou posterior a eles.
Mosteiro copta de Santo Antão, Egito
O desafio da TRADIÇÃO DOS DITOS COMUNS
Uma vez aceita a existência do Evangelho Q e a independência do Evangelho de Tomé, percebe-se que a aproximadamente um terço dos dois Evangelhos é composto das mesmas unidades:
Denomino tais 37 unidades de tradição de ditos comuns e, já que não há evidencia de nenhuma sequência comum na distribuição delas por entre os dois Evangelhos, considero que a fonte seja oral e não escrita (ver o Anexo). [previsto para ser postado futuramente neste blog, juntamente com a segunda seção deste texo: A tradição Paulina X a tradição de ditos comuns]
Porém, para o meu objetivo presente, a questão mais importante diz respeito à teologia da tradição dos ditos comuns e, em função dos constrangimentos de tempo desta apresentação, respondo à pergunta enfocando estas quatro unidades comuns:
A semente de mostarda | Evangelho de Tomé 20 | Evangelho Q: Lc 13,18-19 = Mt 13,31-32 |
Maior que João | Evangelho de Tomé 46 | Evangelho Q: Lc 7,28 = Mt 11,11 |
Bem-aventurados os pobres | Evangelho de Tomé 54 | Evangelho Q: Lc 6,20 = Mt 5,3 |
O fermento | Evangelho de Tomé 96,1-2 | Evangelho Q: Lc 13,20-2 = Mt 13,33 |
O Reino
Embora o Reino seja especificado de forma divergente quadro ditos, todos eles concernem ao Reino divino e transcendental como um conceito escatológico e todos eles se referem à grande limpeza a ser feita por Deus no mundo – aqui embaixo, na terra (respectivamente):
Evangelho de Tomé | Lucas | Mateus |
O Reino dos Céus O Reino O Reino dos Céus O Reino do Pai | O Reino de Deus O Reino de Deus O Reino de Deus O Reino de Deus | O Reino dos Céus O Reino dos Céus O Reino dos Céus O Reino dos Céus |
Uma vez que há um consenso historiográfico de que a mensagem e a missão de Jesus diziam respeito ao Reino de Deus, isto coloca a tradição dos ditos comuns em continuação direta com o Jesus histórico.
Presença
Mas o Reino é já presente ou será num futuro iminente para a tradição de ditos comuns? Atentemos, por exemplo, ao segundo dito sobre João Batista:
Evangelho de Tomé 46 | Lucas 7,28 | Mateus 11,11 |
“Jesus disse: De Adão a João Batista, entre os nascidos de mulher, nenhum foi maior do que João Batista, de modo que seus olhos não serão destruídos. Eu, porém disse que, quem dentre vós se tornar uma criança, reconhecerá o Reino e será maior do que João”. | “Eu vos digo: entre todos os nascidos de mulher não há ninguém maior do que João. No entanto, o menor no Reino de Deus é maior do que ele.” | “Em verdade, eu vos digo, entre todos os nascidos de mulher não surgiu quem fosse maior que João Batista. No entanto, o menor no Reino dos Céus é maior do que ele.” |
Apesar das diferentes rendições e diferentes redações, a tradição de ditos comuns deve ter contrastado o grande valor de João ao valor ainda maior de estar no Reino. Enquanto João proclamou o advento de Deus como algo num futuro iminente, ao menos temporariamente, a tradição dos ditos comuns permaneceu em continuidade com o Reino já presente de Jesus.
Pobreza
Isto também aparece no terceiro dito, onde o Reino já é presente para os pobres e oprimidos deste mundo:
Evangelho de Tomé 54 | Lucas 6,20 | Mateus 5,3 |
“Jesus disse: Benditos vós, os pobres, porque a vós pertence o Reino dos Céus.” | “Felizes vós, os pobres, porque vosso é o Reino de Deus!” | “Felizes os pobres no espírito, porque deles é o Reino dos Céus.” |
Eles não são bem-aventurados agora em razão de um advento futuro, mas podem perceber esse advento aqui e agora.
Parábolas
Tanto a primeira quanto a última unidade dos quatro ditos são parábolas e para sublinhar o eschaton presente como um evento participativo, interativo e colaborativo. Não se trata de Deus sem auxílio daqueles que acreditam e nem daqueles que acreditam sem auxílio de Deus.
Como um gênero de discurso, as parábolas atraem e desafiam o ouvinte ou o leitor a fazer uma interpretação. Por isso atraem e desafiam à participação no processo da presença do Reino. De que forma as metáforas como “mostarda” ou “fermento” proclamam o Reino? A parábola é mais precisamente o gênero linguístico apropriado para o eschalon participativo.
Em termos de conclusão, e aos menos a partir deste exame preliminar, a tradição dos ditos comuns se mostra em continuidade muito próxima, tanto em termos do conteúdo quanto da forma, com a proclamação, por parte de Jesus histórico, do desafio participativo de um eschaton movido pela colaboração entre Deus e aqueles que creem.
“A continuidade estava no mimetismo, não na mnemônica,
em imitar a vida, não em lembrar palavras.”
John Dominic Crossan, O nascimento do cristianismo, p.441.
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Este texto é parte da versão traduzida da segunda conferência ministrada por John Dominic Crossan em 18.10. 2007 no I Seminário Internacional do Jesus Histórico. Tradução de Monica Selvatici.
Artigo tem por base os seguintes livros: [1] O nascimento do cristianismo. O que aconteceu nos anos que se seguiram à execução de Jesus. São Paulo: Paulinas, 2004. [2] Em busca de Paulo. Como o apóstolo de Jesus opôs o Reino de Deus ao império romano. São Paulo: Paulinas, 2007 (em co-autoria com Jonathan L. Reed).
Também se apoia na conferência proferida pelo autor neste simpósio, na qual proponha que Jesus proclamou não uma limpeza escatológica do mundo num futuro iminente somente por intervenção de Deus, mas uma limpeza escatológica do mundo já presente por meio da colaboração entre os seres humanos e Deus.
Fonte: A descoberta do Jesus histórico. André L. Chevitarese, Gabriele Cornelli, (organizadores), 1ª Edição, São Paulo: Paulinas, 2009. (Coleção quem dizem que sou?).
Amplie seus conhecimentos lendo “As três gerações do cristianismo primitivo” e “O Evangelho segundo Mateus” da postagem “Festejos de Reis” de 03 de janeiro de 2012.
Nota: “As duas vozes mais antigas da tradição de Jesus” foi publicado para refletirmos sobre a importância do estudo da Bíblia no contexto histórico, nas dimensões política, social, cultural e econômica em que seus relatos foram escritos. Conforme recentes descobertas sobre fatos nela registrados e a opinião de estudiosos do texto bíblico, com o objetivo de alcançarmos o significado espiritual das Escrituras.
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Para refletir:
“Venha o Teu reino,
O Teu reino já veio; Tu estás sempre presente.”
[O sentido espiritual da Oração do Senhor – do livro Ciência e Saúde com a Chave das Escrituras, de Mary Baker Eddy, pp. 16-17.]
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