terça-feira, 8 de abril de 2014

CRISTIANISMO OU CRISTIANISMO DE ORIGEM?

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O evangelho de Maria Madalena e Tomé  foi por muito tempo utilizado por cristão em suas comunidades. Apesar de serem considerados escritos não-autorizados, os apócrifos têm muito a nos dizer sobre as origens do cristianismo. Os evangelhos canônicos, os oficiais, com certeza são enriquecidos com os dados de fé encontrados nos apócrifos.

Aquilo que no início do cristianismo era simplesmente expressão devocional da fé em Jesus passou a ser um dado histórico sobre ele. E o que era histórico passou a ser dado de fé. Por isso, para conhecer Jesus sob outros prismas torna-se interessante descobrí-lo também nos apócrifos. Jesus é um só, mas os escritos sobre ele são, por assim dizer, reflexo das várias maneiras pelas quais as comunidades o compreenderam. São experiências múltiplas e diferentes. Mas, de fato,  uma se impôs como exata, tornando-se oficial.  Jacir de Freitas Farias

 

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Cristianismo ou cristianismo de origem?

 

Jacir de Freitas Farias

 

Depois da morte de Jesus - ano 33 da Era Comum - até a redação dos primeiros escritos sobre ele, por volta dos anos 60/70 E.C., temos um período vago de aproximadamente  trinta anos.  Nesse meio tempo, surgiram disputas teológicas em torno da pessoa de Jesus. Para as comunidades cristãs era de fundamental importancia compreender quem ele era.

No entanto, elas se defrontaram com o fato de que muitos discipulos  e discípulas que conviveram com Jesus já tinham morrido. Alguns, como o apostolo Paulo, por não terem conhecido pessoalmente Jesus, o anunciavam ressucitado. Outros, como Tiago, considerado irmão de Jesus  e judeu piedoso de Jerusalem, tinham outra visão da missão de Jesus, pois com ele haviam convivido. Para Paulo, a história de Jesus começa na sexta-feira e termina no domingo da ressureição. Segundo este, "em vão seria a nossa fé se não fosse a ressureição  de Jesus". Não só as cartas paulinas, mas os Atos dos Apóstolos  refletem a disputa teológica entre Tiago e Paulo.

Estudos recentes concluem que caso tivesse triunfado o Jesus de Tiago, o cristianismo teria outro perfil: mais aguerrido, de cunho judaico e menos afeiçoado ao império romano. Paulo, com certeza, anunciou a cruz de Jesus como libertação, e não simplismente para a salvação dos pecados. Impôs-se a segunda ideia, bem como a de Jesus ressucitado. 

Desse esforço coletivo para traçar o perfil do Mestre surgiram varios cristianismos, isto é, varios modos de interpretar Jesus,   os quais classificamos, a seguir, segundo sua linha mestra de pensamento e a comunidade ou pessoa que o representa:

a)  cristianismo dos ditos de Jesus (Fonte Quelle, Tomé);

b) cristianismo da cura e do caminho (Marcos);

c) cristianismo  de Jesus Filho de Deus, Messias e seguidor do judaismo (Mateus);

d) cristianismo da salvação para judeus e não-judeus (Lucas);

e) cristianismo do discurso teológico elaborado e dos sinais (João);

f) cristianismo do Jesus histórico e revolucionário (Tiago, Tomé);

g) cristianismo do Jesus ressucitado e glorioso (Paulo);

h) cristianismo  do Jesus ressucitado que mora dentro de cada um de nós de forma integrada e que nos convoca a viver e testemunhar a harmonia (Maria Madalena);

i) cristianismo gnóstico, que mostra Jesus, o ressucitado que traz a salvação (Tomé, Maria Madalena, Felipe);

j) cristianismo da apostolicidade, que indica a organização comunitária e hierarquica da comunidade para garantir a pregação da Boa- Nova do Evangelho (Atos dos Apóstolos e Cartas de Paulo).

 

Somos herdeiros desses vários tipos de cristianismos. Mateus, Lucas, Tiago, João e os demais que continuam vivos em  nosso meio. Por outro lado, o cristianismo que teve primazia foi o da apostolicidade, por ter sido ele o que norteou as várias linhas de pensamento, tornando-se, assim, o cristianismo da oficialidade, o canônico.

As outras correntes de pensamento, para também serem consideradas canonicas, tiveram de se adequar aos princípios da apostolicidade. "Os apostolos foram perseguidos teologicamente e também perseguiram pensamentos diferentes no interior das comunidades". [Cf. Farias, Jacir de Freitas et alii. O Espírito de Jesus rompe barreiras: os vários "rostos" do cristianismo segundo Atos dos Apóstolos (1-15). In: A palavra na vida. São Leopoldo, CEBI/MG, nn. 158/159, p. 17, 2001.]

Na escolha do substituto de Judas, os critérios utilizados para selecionar os candidatos são: ser varão, ter sido discipulo de Jesus durante o tempo de sua vida terrestre e ter sido chamado e enviado a dar testemunho do ressucitado. O texto biblico (At. 1: 21-26) nos revela que o escolhido por sorte foi Matias. Ao ler essa passagem de Atos, não questionamos o procedimento da escolha. Parece que houve consenso na indicação.

No entanto, esse parece não ter sido o caminho lógico. O texto que temos à disposição  já fora filtrado pela crítica. E é por isso que nos perguntamos: Por que Maria Madalena não poderia ter sido a escolhida? Só por ser mulher? Maria Madalena exercia forte liderança nas primeiras comunidades. Ela disputou, como veremos mais adiante, a liderança do grupo do apostolo Pedro. Não enquanto, o grupo dos Doze, que se impôs como único, impediu o registro de tais discussões. O evangelho de Maria Madalena nos mostra os conflitos que devem ter existido entre os apóstolos Pedro, André e Maria Madalema.

Os relatos sobre Jesus são uma infima parte daquilo que ele fez ou disse. A escolha dos fatos a serem escritos está relacionada com a experiencia da comunidade que os escreve, após te-los  guardado na memoria. Jesus nunca escreveu nada sobre si mesmo. Nunca saberemos, de fato, toda a sua história, mas intrepretação delas.

A pregação missionária, catequética e litúrgica da paixão e ressureição motivou a formação dos evangelhos canônicos. Tomé não fala da ressureição de Jesus. E Felipe chega a dizer  que Cristo primeiro ressucitou e depois morreu. Como entender esses vários modos de narrar o evento Jesus? Por que a tradição não revelou ou escondeu essas informações?

O cristianismo de João teve dificuldade para entrar na lista dos livros canônicos. Não seria o evangelho  de João parente próximo do evangelho de Maria Madalena? Segundo os apócrifos, a discipula amada de Jesus é Maria Madalena. Jesus a amou mais que aos apóstolos (evangelho de Maria Madalena 18:14). Não teria a comunidade de Maria Madalena colocado na boca de João os seus ensinamentos para que esses  pudessem ser aprovados pelos apóstolos e pela tradição? João não seria Maria Madalena, a discípula, companheira e amada de Jesus?

Boa questão! Possivelmente não teremos a resposta para ela, mas que após a morte de Jesus surgiram vários modos de interpretá-los, os quais chamamos de cristianismo, disso não podemos duvidar.

Os evangelhos canonicos e as cartas são reflexos claros do cristianismo que se firmou como "verdadeiro". Os evangelhos, sobretudo, ao contar a história de Jesus, quiseram ser uma resposta ao grupo dos que pensavam que a vida de Jesus não contava. E esses transformaram em verdadeiras obras literárias. E belezas literárias assim tão raras só podiam ser inspiradas por Deus. Os apócrifos, segundo alguns estudiosos, desde o ano 50 da E.C., corriam para fora nessa disputa teológica pelo perfil de Jesus. Ou foram colocados de lado? É o que veremos na sequencia de nossas reflexões.

A Boa-Nova de Jesus ressuscitado rompeu as fronteiras do judaismo e chegou ao império romano. Somos filhos desse ardor   missionário e apostólico. Viva Paulo e seus companheiros e companheiras de evangelização! Mas imagine se a escola de Tiago tivesse vencido Paulo e seus companheiros na batalha sobre quem detém e anuncia o perfil de Jesus? Não seríamos cristãos de outro modo? Ou já teriamos deixado de existir?   

[...] na verdade o numero de livros apócrifos, sejam eles   do Primeiro Testamento (Velho Testamento) ou Segundo Testamento (Novo Testamento), passa de cem. O fato de termos tantos escritos sobre o evento Jesus é sinal de que havia uma disputa teológica nos primeiros seculos do cristianismo. A tradição se encarregou de selecionar alguns escritos e conservá-los como canonicos. Outros se mantiveram pela persistencia e resistencia de algumas comunidades.

Também os apocrifos do Segundo Testamento podem ser classificados segundo as clássicas categorias de evangelhos, atos, epistulas e apocalipses. Enumeramos a seguir uma lista contendo alguns deles.  [No bloco dos evangelhos estão catalogados livros apócrifos que não são propriamente evangelhos, mas que foram aí colocados por razões metodológicas]

                             

Evangelhos:  Segundo dos Hebreus, dos Ebionistas ou Doze, Segundo dos Egípcios, de Pedro, de Maria Madalena, de André, de Mateus, de Matias,  de Tomé, do Pseudo-Tomé, de Felipe, de Bartolomeu, de Barnabé, de Tiago Menor, da Ascensão de Tiago, de Judas Iscariotes,  de Gamaliel, de Verdade, Pseudo-Mateu,  Árabe da Infância de Jesus,  Armênio da Infância de Jesus, História do Nascimento de Maria ou Proto- Evangelho,  de Tiago,  A filha de Pedro,  A vingança do Salvador,  A descida de Cristo aos infernos, Tradição a respeito de Pilatos, Livro do Descanso de Maria, História de José o carpinteiro,  A cura de Tibério,  Declaração de José de Arimatéia e Transito de Maria.

Atos:  de Pedro, de Paulo, de Tecla e de Paulo, de João, de André, de Tomé, de Filipe, de Pilatos ou Evangelho de Nicodemos, de Mateus, de Barnabé, dos Doze Apóstolos, de Tadeu, de Pedro e André.

Epístolas: Cristo a Abgar, Abgar a Cristo, Sêneca a Paulo, Pilatos a Herodes, Pilatos a Tibério, Paulo aos Laodicenses, Pedro a Filipe, Pilatos a César ou Anáfora de Pilatos, Carta dos Apóstolos, Terceira Epístola aos Coríntios, de Barnabé, aos Alexandrinos e de Tiago.

Apocalipses: de Pedro, de Paulo, de Tomé, de Estevão, de João, de Paulo, da Virgem e de Tiago.

 

Fonte: As origens apócrifas do cristianismo - Comentários aos evangelhos de Maria Madalena e Tomé, Teologias Bíblicas nº 16, Editora Paulinas, 2ª Edição, 2004.

Autor: Jacir de Freitas Faria, sacerdote franciscano, é mestre em exegese bíblica pelo Pontifício Instituto Bíblico de Roma.

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