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Comentário sobre relato bíblico:
Os estudos bíblicos se constituem numa
vibrante área de pesquisa que publica de forma intensa. Isso se deve ao fascínio
que os textos antigos exercem sobre os leitores contemporâneos, seja como texto
de saber histórico, seja como texto que sempre se mostra aos leitores de forma
renovada.
Por isso, a Bíblia é estudada numa
riqueza de perspectivas, abordagens, métodos e hermenêuticas. Ao
interesse pelo texto bíblico soma-se a busca por sua origem, da mesma forma que
pelos textos que lhe são vizinhos: os apócrifos, pseudepígrafos, os Manuscritos
do Mar Morto. Afirmação de Gabrielle
Boccaccini que leciona no
Departamento de Estudos do Oriente Próximo da Universidade de Michigan,
E.U.A.
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Senhor, eu não sou digno
de que entres em minha casa
Lucas 7:1-10
Edmilson Schinelo
Uma longa viagem de Jesus e de seus discípulos, cansaço, fome...
Chegaram a colher espigas em roça alheia, num dia de sábado (Lucas 6,1-5).
Depois de curar muita gente (Lucas 6,6-11.18-19), de proclamar as
bem-aventuranças (o que em Lucas acontece numa planície - cf.6,17.20-26), e de
orientar seus discípulos, Jesus finalmente chega em casa, na cidade de
Cafarnaum.
Mal acabou de entrar na cidade e é procurado por lideranças judaicas da
cidade (anciãos ou presbíteros). Eles vêm a pedido de um centurião romano, cujo
servo está muito doente. Insistem que Jesus vá salvá-lo (Lucas 7,1-3).
O descanso fica para depois e Jesus se desloca, então, à casa do
centurião. No caminho, amigos do centurião vão ao seu encontro com novo recado:
Senhor, não te incomodes, porque não sou digno de que entres em minha casa... A
frase nos é muito conhecida: uma palavra de Jesus bastaria para que a cura
acontecesse, para que a salvação se realizasse (Lucas 7,6-7).
Jesus fica admirado com a fé do centurião, que é estrangeiro: Eu vos digo
que nem mesmo em Israel encontrei uma fé como esta! (Lucas 7,9). E, sem que o
texto mencione as palavras curadoras de Jesus, a cura acontece. A narrativa se
conclui afirmando que ao voltarem para casa, os enviados encontraram o servo em
perfeita saúde (Lucas 7,10).
Dois
protagonistas marginais
Por motivos bem diferentes, Jesus e o centurião, os protagonistas do
episódio, ocupam lugares marginais em seu meio. Jesus é profeta, consciente da
situação de opressão vivida por seu povo, mas nem sempre bem aceito em sua
própria terra. Ele mesmo havia afirmado: Nenhum profeta é bem recebido em sua
pátria! (Lucas 4,24).
O centurião, por sua vez, representava o poder colonizador e tirano dos
romanos. Comandando a centúria (tropa romana de cerca de cem soldados), ele tem
o papel de garantir a "ordem pública" e assegurar a cobrança dos
tributos (em Cafarnaum, especialmente os impostos da pesca).
A serviço de Roma ou de Herodes Antipas, representa os interesses de uma
pequena elite. Não é preciso muito esforço para imaginar o quanto a população
local o rejeitava.
Na versão apresentada por Mateus (Mateus 8,5-13), é o próprio centurião
que se dirige a Jesus. E tal como a legião de demônios (Marcos 5,12; Mateus
8,31), ele implora a Jesus. O representante das forças do império se dobra às
forças do Reino.
Em Mateus, a fé do centurião é destacada (em contraste com a pouca fé
dos israelitas). Mas também se destaca o poder de Jesus em relação ao do
centurião.
De maneira diferente, o relato de Lucas, quer mostrar outra imagem do centurião:
ele não se sente digno sequer de ir até Jesus, envia alguns dos anciãos dos
judeus. E estes o apresentam como uma pessoa que ama a nação judaica. Teria até
construído (ou mandado construir) a sinagoga da cidade (Lucas 7,5).
Sabemos que o evangelho de Lucas tem a tendência de amenizar o papel
opressor dos romanos. É o único relato no qual até na cruz Jesus perdoa os
soldados, porque não sabem o que fazem (Lucas 23,34). Mesmo assim, chama a
atenção não só a fé, mas também a bondade do centurião, demonstrada pelo amor à
população local e pela preocupação com o servo doente.
Se ele foi de fato tal pessoa, não teria sido bem visto pelo próprio
império romano. Neste caso, teria feito a escolha de "estar à margem"
pela maneira com que usou seus privilégios (sua fortuna ou sua autoridade).
Salvar uma
pessoa para devolvê-la à escravidão? Ou outra masculinidade?
Bem mais à margem é a condição do jovem doente. O texto o apresenta
inicialmente como um servo ou escravo (no grego, doúlos). Seria
"vantajosa" a cura para que ele voltasse à condição de escravo? Que
salvação seria essa? Que libertação lhe traria Jesus? Curar uma pessoa para
devolvê-la à escravidão do império?
Parece ser outra a compreensão da comunidade lucana. Se, por um lado, a
cura representa a antecipação do Reino definitivo, este Reino também se adianta
pela forma com que é descrita a relação entre o centurião e seu servo. O texto
afirma que ele o estimava muito (Lucas 7,2).
Não se trata, entretanto, de uma "estima" em função do valor
financeiro ou laboral do servo. O termo é o mesmo utilizado pela primeira carta
de Pedro ao falar de Jesus: a pedra rejeitada pelos homens, para Deus é a pedra
preciosa (2Pedro 2,4). Trata-se de uma estima especial, um carinho precioso.
Qual seria a relação entre o centurião e essa pessoa? Não há como saber.
De qualquer forma, não se trata de relação senhor-escravo. Isso fica mais claro
quando os amigos transmitem o novo recado do centurião: Não sou digno de que
entres em minha casa... Mas dizei uma palavra e o meu rapaz será curado (Lucas
7,7).
Quando faz uso da fala, o centurião não o chama de servo (doúlos), mas
de "meu rapaz". O termo grego é "pais", que em outros
contextos é traduzido por jovem, menino, criança e até filho (Lucas 8,54; João
4,51; 6,9). Para o centurião, a pessoa a ser curada é o seu rapaz, o seu jovem.
Como o texto usou antes e volta a usar depois o termo servo, é menos
provável tratar-se aqui de criança ou filho. Não raramente, homens do mundo
grego romano tinham consigo jovens ou servos em relação de grande amizade e
companheirismo, às vezes também namoro.
Não é possível afirmar isso do texto. Mas é notável outro modelo de
masculinidade: não nos é apresentada a imagem de um soldado tirano, violento,
fazendo valer sua força e sua autoridade para conseguir seus interesses.
Ao contrário, trata-se de um
estrangeiro sensível à população local e muito mais ainda ao rapaz que está
doente. Mais do que um servo, ele tem um companheiro. Mesmo em meio a sistemas
tiranos, novas relações são possíveis!
Mais uma vez, um estrangeiro "pagão" é apresentado como modelo
de fé e de bondade: compromisso solidário também assumido pelo samaritano
(Lucas 10,29-37), apresentado a nós hoje como convite e desafio.
Tal como o centurião, sejamos capazes de, pela confiança e pelo jeito de
vivermos novas relações, despertar a admiração de Jesus (Lucas 7,9).
Fonte: Edmilson Schinelo, assessor do CEBI - Centro de Estudos
Bíblicos, São Leopoldo, RS, Brasil.
Nota: O texto, Senhor, eu não sou digno de que entres em minha
casa - Lucas 7:1-10, não representa necessariamente a opinião deste blog, nem das
igrejas do Movimento da Ciência Cristã. Foi publicado para refletirmos
sobre a importância do estudo da Bíblia em seu contexto histórico, nas
dimensões política, social, cultural e econômica. Conforme recentes
descobertas sobre fatos nela registrados e opinião de estudiosos do texto
bíblico, com o objetivo de alcançarmos o significado espiritual das Escrituras.
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