domingo, 21 de julho de 2013

SENHOR, EU NÃO SOU DIGNO DE QUE ENTRES EM MINHA CASA - LUCAS 7:1-10


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Comentário sobre relato bíblico:



Os estudos bíblicos se constituem numa vibrante área de pesquisa que publica de forma intensa. Isso se deve ao fascínio que os textos antigos exercem sobre os leitores contemporâneos, seja como texto de saber histórico, seja como texto que sempre se mostra aos leitores de forma renovada.

Por isso, a Bíblia é estudada numa riqueza de perspectivas, abordagens, métodos  e hermenêuticas. Ao interesse pelo texto bíblico soma-se a busca por sua origem, da mesma forma que pelos textos que lhe são vizinhos: os apócrifos, pseudepígrafos, os Manuscritos do Mar Morto. Afirmação de Gabrielle Boccaccini que leciona no Departamento de Estudos do Oriente Próximo da  Universidade de Michigan, E.U.A.


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Senhor, eu não sou digno
de que entres em minha casa
Lucas 7:1-10


Edmilson Schinelo



Uma longa viagem de Jesus e de seus discípulos, cansaço, fome... Chegaram a colher espigas em roça alheia, num dia de sábado (Lucas 6,1-5). Depois de curar muita gente (Lucas 6,6-11.18-19), de proclamar as bem-aventuranças (o que em Lucas acontece numa planície - cf.6,17.20-26), e de orientar seus discípulos, Jesus finalmente chega em casa, na cidade de Cafarnaum. 


Mal acabou de entrar na cidade e é procurado por lideranças judaicas da cidade (anciãos ou presbíteros). Eles vêm a pedido de um centurião romano, cujo servo está muito doente. Insistem que Jesus vá salvá-lo (Lucas 7,1-3).
O descanso fica para depois e Jesus se desloca, então, à casa do centurião. No caminho, amigos do centurião vão ao seu encontro com novo recado: Senhor, não te incomodes, porque não sou digno de que entres em minha casa... A frase nos é muito conhecida: uma palavra de Jesus bastaria para que a cura acontecesse, para que a salvação se realizasse (Lucas 7,6-7).
Jesus fica admirado com a fé do centurião, que é estrangeiro: Eu vos digo que nem mesmo em Israel encontrei uma fé como esta! (Lucas 7,9). E, sem que o texto mencione as palavras curadoras de Jesus, a cura acontece. A narrativa se conclui afirmando que ao voltarem para casa, os enviados encontraram o servo em perfeita saúde (Lucas 7,10).

Dois protagonistas marginais

Por motivos bem diferentes, Jesus e o centurião, os protagonistas do episódio, ocupam lugares marginais em seu meio. Jesus é profeta, consciente da situação de opressão vivida por seu povo, mas nem sempre bem aceito em sua própria terra. Ele mesmo havia afirmado: Nenhum profeta é bem recebido em sua pátria! (Lucas 4,24).
O centurião, por sua vez, representava o poder colonizador e tirano dos romanos. Comandando a centúria (tropa romana de cerca de cem soldados), ele tem o papel de garantir a "ordem pública" e assegurar a cobrança dos tributos (em Cafarnaum, especialmente os impostos da pesca).
A serviço de Roma ou de Herodes Antipas, representa os interesses de uma pequena elite. Não é preciso muito esforço para imaginar o quanto a população local o rejeitava.
Na versão apresentada por Mateus (Mateus 8,5-13), é o próprio centurião que se dirige a Jesus. E tal como a legião de demônios (Marcos 5,12; Mateus 8,31), ele implora a Jesus. O representante das forças do império se dobra às forças do Reino.
Em Mateus, a fé do centurião é destacada (em contraste com a pouca fé dos israelitas). Mas também se destaca o poder de Jesus em relação ao do centurião.
De maneira diferente, o relato de Lucas, quer mostrar outra imagem do centurião: ele não se sente digno sequer de ir até Jesus, envia alguns dos anciãos dos judeus. E estes o apresentam como uma pessoa que ama a nação judaica. Teria até construído (ou mandado construir) a sinagoga da cidade (Lucas 7,5).
Sabemos que o evangelho de Lucas tem a tendência de amenizar o papel opressor dos romanos. É o único relato no qual até na cruz Jesus perdoa os soldados, porque não sabem o que fazem (Lucas 23,34). Mesmo assim, chama a atenção não só a fé, mas também a bondade do centurião, demonstrada pelo amor à população local e pela preocupação com o servo doente.
Se ele foi de fato tal pessoa, não teria sido bem visto pelo próprio império romano. Neste caso, teria feito a escolha de "estar à margem" pela maneira com que usou seus privilégios (sua fortuna ou sua autoridade).

Salvar uma pessoa para devolvê-la à escravidão? Ou outra masculinidade?

Bem mais à margem é a condição do jovem doente. O texto o apresenta inicialmente como um servo ou escravo (no grego, doúlos). Seria "vantajosa" a cura para que ele voltasse à condição de escravo? Que salvação seria essa? Que libertação lhe traria Jesus? Curar uma pessoa para devolvê-la à escravidão do império?
Parece ser outra a compreensão da comunidade lucana. Se, por um lado, a cura representa a antecipação do Reino definitivo, este Reino também se adianta pela forma com que é descrita a relação entre o centurião e seu servo. O texto afirma que ele o estimava muito (Lucas 7,2).
Não se trata, entretanto, de uma "estima" em função do valor financeiro ou laboral do servo. O termo é o mesmo utilizado pela primeira carta de Pedro ao falar de Jesus: a pedra rejeitada pelos homens, para Deus é a pedra preciosa (2Pedro 2,4). Trata-se de uma estima especial, um carinho precioso.
Qual seria a relação entre o centurião e essa pessoa? Não há como saber. De qualquer forma, não se trata de relação senhor-escravo. Isso fica mais claro quando os amigos transmitem o novo recado do centurião: Não sou digno de que entres em minha casa... Mas dizei uma palavra e o meu rapaz será curado (Lucas 7,7).

Quando faz uso da fala, o centurião não o chama de servo (doúlos), mas de "meu rapaz". O termo grego é "pais", que em outros contextos é traduzido por jovem, menino, criança e até filho (Lucas 8,54; João 4,51; 6,9). Para o centurião, a pessoa a ser curada é o seu rapaz, o seu jovem.
Como o texto usou antes e volta a usar depois o termo servo, é menos provável tratar-se aqui de criança ou filho. Não raramente, homens do mundo grego romano tinham consigo jovens ou servos em relação de grande amizade e companheirismo, às vezes também namoro.
Não é possível afirmar isso do texto. Mas é notável outro modelo de masculinidade: não nos é apresentada a imagem de um soldado tirano, violento, fazendo valer sua força e sua autoridade para conseguir seus interesses.
 Ao contrário, trata-se de um estrangeiro sensível à população local e muito mais ainda ao rapaz que está doente. Mais do que um servo, ele tem um companheiro. Mesmo em meio a sistemas tiranos, novas relações são possíveis!
Mais uma vez, um estrangeiro "pagão" é apresentado como modelo de fé e de bondade: compromisso solidário também assumido pelo samaritano (Lucas 10,29-37), apresentado a nós hoje como convite e desafio.
Tal como o centurião, sejamos capazes de, pela confiança e pelo jeito de vivermos novas relações, despertar a admiração de Jesus (Lucas 7,9).


Fonte: Edmilson Schinelo, assessor do CEBI - Centro de Estudos Bíblicos, São Leopoldo, RS, Brasil.


Nota: O  texto, Senhor, eu não sou digno de que entres em minha casa - Lucas 7:1-10, não representa necessariamente a opinião deste blog, nem das igrejas do Movimento da Ciência Cristã. Foi publicado para  refletirmos sobre a importância do estudo da Bíblia em seu contexto histórico, nas dimensões política, social, cultural e econômica. Conforme recentes  descobertas sobre fatos nela registrados e opinião de estudiosos do texto bíblico,  com o objetivo de alcançarmos o significado espiritual das Escrituras.

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