domingo, 12 de junho de 2011

A Bíblia e a historicidade dos fatos.

A Bíblia e a historicidade dos fatos.
 
Ildo Bohn Gass 
biblista, leigo católico.

O presente artigo faz parte do livro Porta de Entrada,
o primeiro de oitos volumes da coleção Uma introdução à Bíblia.
Exemplar da Bíblia de Gutenberg.        
 A Bíblia não é um livro de ciências
e nem um livro de história.

Assim como os livros da Bíblia não são livros de ciência, assim também não podemos lê-los simplesmente como livros de história. A Bíblia é como um espelho em que, através da história do povo hebreu, está refletida a história da humanidade. Eis por que identificamos quase espontaneamente situações que o povo de Israel viveu com situações que estamos vivendo hoje. Assim também identificamos personagens da Bíblia com personagens de nosso tempo, como se Caim e Abel, Abraão e Sara, Moisés e o Faraó, Jeremias e Amós continuassem no meio de nós.



A Bíblia é interpretação da história.


O Papiro Rylands é o fragmento mais antigo
do manuscrito do Evangelho de João, ca. 125 a.C.


Nem tudo o que está narrado nos livros da Bíblia conhecidos como históricos aconteceu do jeito como está escrito. É que, mais do que fazer uma descrição dos fatos como se fossem filmagem, as Escrituras interpretam a história, a vida. Descrevem a experiência de Deus que as pessoas e o povo fazem. Por isso, é correto dizer que, ao estudarmos um texto bíblico, estamos na verdade interpretando uma interpretação.

Na Bíblia, há várias interpretações
da mesma história.
 

Dentro da própria Bíblia tem diferentes interpretações a respeito da mesma história. Por exemplo, a história da tomada da terra narrada no livro de Josué não é a mesma que está narrada no livro dos Juízes. Para exemplificar, veja como em Josué se afirma que toda a Terra Prometida já estava libertada das mãos dos reis (Js 11,23; 21,43-45). Porém, logo adiante, no livro de Juízes, se afirma que ainda faltava muito por conquistar (Jz 1,21.27-35).

Para entender estas diferenças, é importante ter presente que foi um longo processo que essas histórias percorreram até serem fixadas na forma escrita como as temos hoje. Cada texto tem sua intenção teológica. São interpretações diferentes e até contraditórias dos mesmos fatos históricos.

Há, inclusive, uma evolução na reflexão teológica, como se pode perceber, por exemplo, na atribuição dos males que vêm em prejuízo do povo.

Um caso é o recenseamento que o rei Davi fez (2Sm 24,1-15). No v. 10, nos é dito que realizar o censo é pecado. Certamente é pecado, porque parecia querer limitar o poder de Deus, a quem pertence o poder sobre a vida das pessoas. Também é pecado, porque visa fornecer ao rei o número de pessoas para poder melhor explorá-las através dos impostos e para saber o número de homens aptos a serem recrutados para a guerra (v. 9). Quando este texto é escrito, pensava-se ainda que Deus era também o autor do mal. Por isso, diz no v. 1 que foi Deus que incitou a Davi para que fizesse o censo. Quando, séculos mais tarde, o mesmo fato é contado novamente, já houve uma evolução na reflexão teológica em Israel. Agora, o mal já não vem mais de Deus, mas vem de Satã (1Cr 21,1).


A Bíblia nasceu aos poucos.


Como podemos ver, a Bíblia é um livro que nasceu aos poucos. Nasceu da vida de um povo que tentou ser fiel a Deus presente no cotidiano.

Antes do texto escrito vêm experiências vividas pelas mais diferentes pessoas e em lugares variados. Todas essas experiências foram sendo contadas, recontadas durante muito tempo. Só então a memória virou texto.

Sobre os mesmos fatos foram surgindo diferentes tradições de acordo com o meio onde eram narradas, recontadas e escritas. Na cidade, nos palácios e no templo a reelaboração era de um jeito. No campo era de outro. Cada qual de acordo com seus condicionamentos, interesses, limites e horizontes.

Aos poucos, as tradições foram agrupadas dentro de narrativas ou conjuntos maiores, adquirindo um novo colorido, fornecendo respostas novas a novas necessidades, até o texto chegar à sua redação final como o temos hoje.


A Bíblia não quer transmitir os fatos,
mas a intenção, a mensagem a partir dos fatos.


Além disso, a Bíblia não descreve uma história "factual", mas "intencional". O mais importante não é o "fato" em si, mas a "intenção" que o autor quer transmitir. Consequência disso é que a pergunta certa a ser feita ao texto bíblico não pode ser: "o fato foi ou não foi assim?", mas sim: "qual a intenção de quem escreveu o texto?", ou: "o que o texto quer dizer?", ou ainda: "qual sua mensagem?".

Para exemplificar o que acabamos de refletir, lembremo-nos da estória de Caim e Abel (Gn 4). Aqueles que lêem esse texto como fato histórico não conseguem explicar de onde veio a mulher de Caim, quando naquele momento, se lemos o texto ao pé da letra, apenas existiam Adão, Eva e Caim. Se, no entanto, vamos ao texto em busca da intenção do autor, do sentido do texto, certamente encontraremos uma resposta.


A Bíblia não é fotografia nem filmagem,
mas raio-X, isto é, revela a vida por dentro.


A Bíblia não apresenta fotografias ou filmagens dos acontecimentos. Sua interpretação dos fatos vai além das aparências, da cara, da fachada. Por isso é melhor compará-la com um raio-X, isto é, a Bíblia nos revela o sentido profundo que está dentro dos fatos, por trás das palavras. Revela a presença misteriosa de Deus na vida, na história, nas pessoas.

Mais do que uma história de fatos, a Bíblia contém teologias da história. São diferentes maneiras de perceber a presença de Deus nos fatos, das suas maravilhas na vida de seu povo. O que lhe interessa é a pulsação da presença de Deus nas veias dos acontecimentos. A comunidade israelita faz como que "pinturas" e, às vezes, quadros diferentes de uma mesma realidade. Assim acontece com as duas "pinturas" da criação, logo no início do livro do Gênesis.

Compare a primeira narrativa da criação (Gn 1,1-2,4a) com a segunda (Gn 2,4b-25) e perceba como o povo da Bíblia pinta dois quadros muito diferentes para revelar o sentido profundo da vida. A primeira reflete a situação de sofrimento do povo no exílio da Babilônia ao redor de 550 a.C. A segunda, ao relatar o plano de Deus para a criação e a humanidade, retrata como o povo alimentava sua esperança na época da opressão do rei Salomão ao redor de 950 a.C.


A Bíblia nos quer revelar a presença
amorosa de Deus na vida.


Continuando a usar imagens para comparar as Escrituras, poderíamos dizer ainda que a Bíblia é como um binóculo. Quando ficamos olhando para ele, nós só enxergamos ele mesmo, o binóculo. Porém, quando olhamos através dele, vemos o horizonte de outro jeito, com outra perspectiva. Assim também é a Sagrada Escritura. Olhando à distância, ela parece um livro qualquer. Mas se olhamos através dela, aquilo que está por trás das palavras, atrás da lente desse "binóculo", então percebemos sua intenção, que é revelar a presença amorosa de Deus na vida, nos acontecimentos.


Deus se manifestou no passado
e continua se manifestando no presente.


Uma coisa que nos deixa com um pé atrás em relação à Bíblia é a facilidade e frequência com que se diz que Deus apareceu e falou com alguns personagens como Noé, Abraão e Sara, Agar e Jacó, Rebeca e Moisés, Elias e tantos outros. Será que apareceu cara a cara e falou com sua voz? Ora, sabemos que Deus não tem cara e sua voz não vibra no ar. Mas também sabemos que, para comunicar nossas experiências mais profundas, temos que usar imagens. Nós, que temos fé, sabemos que Deus está invisivelmente presente em nossa vida, conhecemos os traços do seu rosto e escutamos sua voz, sobretudo em momentos decisivos.




O  povo tem razão quando diz: "Deus te ouça!", "Deus te guarde!", "Vai com Deus!" e outras expressões que manifestam a presença atuante de Deus em todos os nossos passos. Só podemos falar de Deus através de imagens e figuras.



Nota: Este artigo não representa o pensamento deste blog ou de qualquer igreja do  Movimento da Ciência Cristã. Foi publicado com o objetivo de refletirmos sobre a importância do estudo da Bíblia em seu contexto histórico, para alcançarmos o significado espiritual das Escrituras.