quarta-feira, 2 de maio de 2012

A SERPENTE E SATÃ

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São Francisco do Sul, Santa Catarina, Brasil.

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Comentário sobre relato bíblico:

Os estudos bíblicos se constituem numa vibrante área de pesquisa que publica de forma intensa. Isso deve-se ao facínio que os textos antigos exercem sobre os leitores contemporâneos, seja como texto de saber histórico, seja como texto que sempre se mostra aos leitores de forma renovada.

Por isso, a Bíblia é estudada numa riqueza de perspectivas, abordagens, métodos  e hermenêuticas. Ao interesse pelo texto bíblico soma-se a busca por sua origem, da mesma forma que pelos textos que lhe são vizinhos: os apócrifos, pseudepígrafos, os Manuscritos do Mar Morto. Gabrielle Boccaccini - Departamento de Estudos do Oriente Próximo da  Universidade de Michigan, E.U.A..

 

A SERPENTE E SATÃ

 

As Origens: um estudo

de Gênesis 1-11

Heinrich Krauss e Max Küchler

 

 

A serpente era mais astuta do que todos os animais dos campos que Iahweh Deus tinha feito. Ela disse à mulher: “Então Deus disse: Vós não podeis comer de todas as árvores do jardim?”. A mulher respondeu à   serpente: “Nós podemos comer do fruto das árvores do jardim. Mas do fruto da árvore que está no meio do jardim, Deus disse: Dele não comereis, nele não tocareis, sob pena de morte”. A serpente disse então à mulher: ”Não, não morrereis! Mas Deus sabe que, no dia que deles comerdes, vosso olhos se abrirão e vós sereis como deuses, versados no bem e no mal”.

 

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PAUL GAUGUIN – EVA E A ÁRVORE DA "CIÊNCIA DO BEM E DO MAL"

 

Na narrrativa, a entrada em cena, sem mais, de uma serpente, por meio da qual o ser humano desperdiçará  sua oportunidade de tornar-se imortal, pode causar estranheza. O motivo lembra a Epopéia de Gilgtamesh, cujo herói anseia por imortalidade, busca uma “planta da  vida” e chega até mesmo a encorntrá-la. Mas ela lhe é roubada por uma serpente, que come da  planta e pode, assim, sempre rejuvenescer, uma vez que muda de pele.

 

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A serpente, rastejando sobre o próprio ventre e picando o ser humano na coxa ou no acalcanhar (cf.Gn 3, 14), sobre um pedaço de cerâmica mesopotâmico – por volta de 1960-1860 a.C..

 

Pode-se perguntar por que nos mitos e sagas de muitos povos, justamente a serpente se imiscui nos negócios humanos. Presumivelmente, a razão para isso reside na misteriosa existência que lhe foi atribuída no mundo antigo.

Via-se no sinistro animal, que habitava buracos escuros e fendas de rochas, um produto imediato da mãe-terra, o qual, por isso, possui força e capacidades especiais.

Entre estas contava-se também a capacidade de falar, razão pela qual a origem de muitos lugares de oráculos foi remontada a uma serpente, como no oráculo grego de Delfos, que alude ao dragão primitivo Píton, a partir do qual foi nomeada a vidente Pítia.

Essa capacidade de falar poderia explicar o fabuloso motivo do animal falante que, de outro modo, é estranho à Bíblia e, à parte a narrativa do paraíso, só aparece ainda  na história da jumenta de Balaão(Nm 22, 22-35).

A postura do ser humano em relação à serpente,  é até  hoje, ambígua. A periculosidade e a perfídia dela eram proverbiais. Assim, em uma fábula de Esopo, ela semeia desconfiança, a fim de destruir uma amizade. 

Por outro lado, existiam também tradições a propósito de seu caráter auxiliador que a transforma numa interlocutora do ser humano. Visto que se coligavam as serpentes com a fecundidade e com a vida eterna, elas se transformaram no atributo do deus curador Asclépio, como símbolo de uma vida longa e de poder curador, o que ainda hoje se mostra no fato de médicos e farmacêuticos introduzirem a serpente de Asclépio como símbolo de sua profissão.

Um resquício dessa concepção da força curadora da serpente encontra-se ainda no relato da marcha dos israelitas pelo deserto, em que Moisés manda erigir a “serpente de bronze” para proteção contra o veneno das cobras (Nm 21, 4-9).

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Os aspectos positivos da serpente foram posteriormente sempre mais reprimidos pela tradição bíblica posterior. Alguns exegetas vêem a razão para isso na polêmica contra os cultos cananeus, nos quais a serpente – devido à troca de pele periódica – era um símbolo corrente ligado a Baal, o deus da fertilidade, da permanente renovação da vida.

Assim, a história do paraíso desejaria tornar evidente que a serpente, que na verdade não concede a vida mas produz a morte, é uma opositora do Deus Bíblico.

Inevitavelmente surge a pergunta por que a serpente empregou tanta maldade para enganar a mulher. Estranhamente, o texto não oferece nenhuma informação direta disso.

Talvez aqueles mitos que contam a respeito de uma rivalidade entre animal e ser humano poderiam conduzir à pista certa. Na verdade, a partir do contexto narrativo, conclui-se que, no paraíso, o ser humano tinha a oportunidade de comer da árvore da vida e, mediante isso, tornar-se imortal, caso não tomasse do fruto proibido.

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                                        Adão e Eva, Mabuse, Século XVI

 

Dado que foi atribuída à serpente uma ambição da imortalidade, é provável que ela tenha agido por inveja e ciúmes da posição priveligiada do ser humano.

Em favor dessa interpretação depõe o fato de inveja e ciúmes, como fonte de má ações, terem um papel decisivo também em outras narrativas do livro do Gênesis; assim o é no assassinato de Abel por seu irmão Caim, no ludíbrio do pai por causa da primogenitura da história de Jacó e no ódio dos irmãos contra o predileto   do pai no relato de José.

Quanto a uma identificação da serpente do paraíso com o demônio, não há nada no Antigo Testamento. Em Gn 3,1, diz-se, até mesmo expressamente, que a serpente era um dos animais que “Iahweh Deus tinha feito”. Se ela, ao mesmo tempo, em razão de sua astúcia, é apresentada como algo especial em relação aos animais criados, isso não constitui nenhum indício de que o narrador quisesse aludir a algum poder extraterrrestre.

Essa interpretação encontra apoio no fato de que o livro do Gênesis não conhece nenhum dualismo entre Deus e agentes sobrenaturais oponentes; antes, vê na possibilidade do mal uma realidade que reside no ser humano, cuja origem não precisa de explicações ulteriores.

Somente tradições extrabíblicas tardias, do judaísmo do início da era cristã, que também influenciaram nas concepções cristãs acerca da origem do mal, narravam que já antes da criação do mundo Lúcifer, o anjo da mais alta categoria, não podia suportar ser inferior a Deus. Sua rebelião, porém, foi sufocada, no que se apelava para o primeiro relato da criação.

Segundo tal ideia, com a palavra de Deus “E houve luz”, teriam sido criados os anjos bons, e, com a separação entre luz e trevas, os anjos rebeldes foram precipitados nas profundezas do inferno.

Outros escritos extrabíblicos daquele tempo afirmavam que Lúcifer teria ficado enciumado pela criação do ser humano ou – segundo a versão cristã – pela planejada encarnação de Deus em Cristo e, sob a figura da serpente, teria iludido a mulher com a promessa de “sereis como Deus”, a fim de arrastar a humanidade em sua queda.

       

Heinrich Krauss, formado em Direito e Teologia, mora em Haar, no distrito de Munique (Alemanha), e trabalha com escritor, redator e roterista de televisão.

Max Küchler, mora em Freiburg (Suíça) e é professor na área do Novo Testamento na universidade local. 

 

Nota: O  texto  A SERPENTE E SATÃ -  As Origens: um estudo de Gênesis 1-11 de  Heinrich Krauss e  Max Küchlere    não representa necessariamente a opinião deste blog nem de nenhuma das igrejas do Movimento da Ciência Cristã. Foi publicado para  refletirmos sobre a importância do estudo da Bíblia em seu contexto histórico, nas dimensões política, social, cultural e econômica. Conforme recentes  descobertas sobre fatos nela registrados e opinião de estudiosos do texto bíblico,  com o objetivo de alcançarmos o significado espiritual das Escrituras.

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 PARA PENSAR:

SERPENTE (ophis, em grego; nacache, em hebraico). Astúcia; uma mentira; o oposto da Verdade, chamado erro; a primeira menção de mitologia e da idolatria; a crença em mais de um Deus; … a primeira mentira da limitação; o finito; … a primeira pretenção audível de que Deus não era onipotente e que havia outro poder, chamado mal, que era tão real e eterno como Deus, o bem. Ciência e Saúde Com Chave das Escrituras de Mary Baker Eddy  (594:1-11).

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